Kelly Key, que explodiu como ícone pop no Brasil no início dos anos 2000, é vice-presidente de um time de futebol em Angola. A frase inicial desta matéria pode parecer aleatória, mas não se trata de nenhuma aventura maluca. No ano passado, a cantora ajudou a fundar o Kiala FC, um projeto social que tem o objetivo de ajudar jovens carentes. Em entrevista exclusiva à ESPN, a agora dirigente revelou que se inspira em Leila Pereira, presidente do Palmeiras, e chorou ao falar sobre o trabalho clube no africano. “A maior vitória não é levantar troféus, é devolver a dignidade”, resumiu.
A equipe foi criada ao lado do marido Mico Freitas, que é o presidente. Juntos, eles dirigem 70 atletas, divididos nas categorias sub-17 e sub-19, e oferecem, além dos treinos de futebol, alimentação e formação em cursos como mecânica, pintura e informática. A sede fica na zona industrial de Viana, um município com cerca de 3 milhões de habitantes, localizado a 18 quilômetros de Luanda, capital angolana. A estrutura conta com dois campos de gramado natural, vestiário e academia. O próximo passo, de acordo com Kelly Key, é a construção de um alojamento para receber jogadores de outras cidades.
“É engraçado como isso (ela comandar um time de futebol) parece aleatório na cabeça das pessoas, mas para mim faz todo sentido. Você me pergunta se de alguma forma já tinha passado na minha cabeça trabalhar com futebol. Não de uma forma direta, mas como mulher, empreendedora, gestora, o futebol sempre me cercou. O meu marido é apaixonado por futebol desde sempre. A gente está junto há 23 anos”, disse a cantora.
“O Kiala nasce da união das nossas paixões: ele com o futebol; eu com a gestão, o impacto social, a comunicação, por exemplo. E nós, os dois, com esse desejo de fazer algo com verdadeiro propósito. Então, mesmo que o futebol nunca tenha sido uma meta individual minha, ele sempre esteve presente, porque a gente constrói as coisas como um casal, em uma visão integrada”, seguiu.
“Antes eu via o futebol de uma forma muito rasa. Achava que era só sobre talento, sobre sorte. Mas agora, acompanhando a rotina desses meninos [do Kiala], entendo esse peso emocional, a desigualdade, a pressão psicológica, o abandono quando algo não dá certo. Vi atletas com talento absurdo que não iam para frente. Vi outros com o mesmo talento que mudaram a vida, saíram da fome, transformaram família, mas tudo com esse custo muito alto de entrega. Foi nesse universo que eu descobri que o futebol é uma ferramenta de transformação real. O Kiala é fruto dessa vivência, de entender que futebol não é só o entretenimento. É sobrevivência, é formação e futuro”, completou.
O clube completou um ano de fundação em maio. A trajetória, apesar de ainda estar no início, já emociona a cantora.
“Quando a gente junta 70 jovens que passam por dificuldades em um país como Angola, você nem imagina o tanto de histórias que a gente carrega e o quanto eu desejo ver esses meninos sendo projetados. Vai muito além de futebol e de levantar taças. Um dos nossos atletas, antes de chegar aqui, comia uma vez por dia. Uma das refeições que ele fazia era pão com abacate. Hoje ele se alimenta aqui. Ele treina. E a gente contribui de alguma forma para a educação. Ele tem planos, tem uma perspectiva de futuro. E me disse uma vez: ‘O Kiala é o primeiro lugar onde eu me senti… onde eu senti que a minha vida tem valor. Eu vou levar vocês para minha vida inteira. Vocês são a família que eu não tive’. Esse tipo de coisa a gente não esquece”, contou, em meio às lágrimas.
“Eu quero ver esses meninos daqui brilhando, eu quero ver brilhando na Europa, no Brasil, no mundo. Eu quero que, acima de tudo, eles se tornem homens íntegros, preparados, confiantes. Quero que o Kiala seja uma referência de um clube que une estrutura, paixão e propósito”, concluiu.
Em julho do ano passado, Kelly Key foi recebida no Flamengo, ao lado do marido, para apresentar o projeto do Kiala FC. A cantora busca parcerias com equipes maiores para poder oferecer mais oportunidades aos garotos de Angola.
“Nosso objetivo sempre foi projetar essas vidas. Se for pelo Brasil, melhor ainda, porque eu sei o quanto isso representa na vida de todos esses meninos. E a gente segue aberto, conversando com clubes brasileiros para futuros intercâmbios. E não só no Brasil, na Europa também”, disse.
Leila Pereira é inspiração para uma mulher na linha de frente
Além de entender o poder de transformação social que o futebol carrega, Kelly Key também precisou compreender os desafios que uma mulher enfrenta no esporte. Ela contou que chegou a ouvir que “é fácil estar na presidência já que o marido criou o time”.
“Não sabem de nenhuma história, de como foi a construção de tudo isso e tentam sempre diminuir a sua capacidade”, rebateu.
“Ser mulher na gestão do futebol incomoda muita gente. Muitas vezes o desafio nem é o que te dizem; é o que não te dizem. É coisa do silêncio, da invisibilidade. Eu fundei o Kiala junto com o meu marido. Investi, trabalhei, sonhei, criei. Eu lidei com cada desafio de gestão, de liderança, de representatividade, tanto eu quanto ele. Ninguém patrocinou meu sonho, nunca. Tudo o que eu construí na vida veio de muito esforço, muito estudo de visão, coragem”, ressaltou.
“Sou uma pessoa que agarra as oportunidades que surgem com muita disciplina. Tenho muita responsabilidade. Comecei a trabalhar muito cedo, eu tinha 17 anos quando eu comecei na música. Não tinha nenhuma maturidade, mas sempre tive muita responsabilidade. Estar na presidência de um clube, para mim, não é um título decorativo. É uma posição que eu entendo a responsabilidade, porque eu vivo a pressão e o compromisso diário. E eu estou aqui porque eu tenho competência para isso, sem dúvida nenhuma. Chega um momento que a gente tem que parar de invisibilizar essas mulheres potentes”, continuou.
“Como vice-presidente, como fundadora do Kiala, ao lado do meu marido, eu faço questão de honrar essa parceria com ele, mas também de ocupar o meu espaço com muita consciência, porque eu quero, sim, inspirar outras mulheres e mostrar, acima de tudo, que gestão, liderança e estratégia e o coração também podem vir de uma mulher, que a gente não precisa escolher entre ser firme e sensível. A gente pode ser as duas coisas e ter até mais competência para isso”, acrescentou.
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Kelly Key conta que mandou mensagem para Leila Pereira e explica como presidente do Palmeiras a inspira
Cantora e vice-presidente do Kiala FC concedeu entrevista exclusiva à ESPN
Uma das referências de Kelly Key é Leila Pereira, presidente do Palmeiras. A cantora, inclusive, já enviou uma mensagem para a mandatária palmeirense a fim de trocar experiências.
“Eu não a conheço pessoalmente, mas é uma mulher que rompeu muitas barreiras no futebol brasileiro. Eu acompanho a Leila antes mesmo de ela ser presidente, quando ela ainda atuava como patrocinadora”, iniciou.
“Sem dúvida nenhuma ela me inspira muito. Eu mandei uma mensagem. Falei que ela me inspira pelo que faz, porque ela despertou uma consciência em mim, em uma fala específica que deu em uma entrevista coletiva, falando que ela era a única mulher presidindo um clube na Série A. Aquilo me fez parar e pensar: ‘Espera aí, e aqui em Angola, na África?’. Eu comecei em uma loucura de fazer pesquisa, buscar na internet. Eu percebi que eu provavelmente era a única mulher no cargo, dentro da presidência de um clube em Angola”, seguiu.
“Isso teve impacto muito forte e me tocou muito, porque Angola é um país incrível, forte, com povo muito potente, mas onde a presença de uma mulher em cargos de liderança ainda enfrenta muitos bloqueios culturais e estruturais. Quando a Leila Pereira assumiu o Palmeiras, cresceu mais uma referência, porque abriu um caminho onde não havia muito espaço. Uma mulher líder me inspira, me interessa e potencializa outras mulheres”, completou.
Kelly Key ainda não recebeu uma resposta de Leila Pereira, mas segue na luta para desbravar mais espaços no futebol.
“Queria que ela compartilhasse comigo a experiência dela, apesar de vivermos em situações completamente diferentes. Eu falei que eu vim para Angola e pedi para falar com as mulheres mais importantes que eu via por aqui para entender essa questão da liderança em um país totalmente diferente do que eu vivi por todos esses anos”, revelou.
“Quando uma mulher vence, não é uma vitória individual. Eu entendo como uma vitória coletiva. Sempre foi assim, no meu entendimento. Mas é importante lembrar que cada mulher constrói sua história de forma diferente. A Leila está em um clube gigante. Eu estou construindo um clube do zero, em outro continente, com uma realidade social muito distante da dela”, analisou.
“Ela, sim, me inspira. Eu quero saber o que ela fez para chegar até lá, como são os desafios, quero descobrir tudo. Me inspira como uma mulher de coragem e liderança. Mas a minha inspiração diária também vem das meninas que me mandam mensagem, por exemplo, me dizendo: ‘Eu nunca tinha visto uma mulher em um futebol assim’. Então é bem forte essa questão feminina”, finalizou.
O significado de Kiala
A cantora contou a origem do nome do Kiala FC. O termo, segundo ela, vem de uma das línguas de Angola, o Tchokwe, em que significa luz e claridade.
“É como se fosse tradicionalmente dado a quem traz alegria, esperança para família. E tem outras línguas nacionais em Angola que também trazem essa ideia, nesse mesmo caminho, de retorno ao lar, reforçam esse conceito de comunidade, de pertencimento. O Kiala tem também uma origem no Havaí. Ele significa caminho, trajetória. Ou seja, nas diferentes culturas de África, no Havaí, o nome conversa com o que traz a nossa missão: união, formação, retorno ao lar, trajetória, luz”, contou.
“O Kiala é meio que uma síntese de tudo isso. É luz, esperança, caminho, percurso de vida, família que retorna ao lar, que se forma, que se une. E é nesse significado que a gente batizou o clube. Eu tenho relação com Angola há 23 anos. Vivo aqui há quatro anos. Os primeiros sete meses foram avassaladores, porque eu estava em uma nova fase profissional e pessoal também. Foi muito desafiador. Mas hoje é mágico, me deu um verdadeiro novo propósito. É como se esse significado batizasse o nosso clube. Porque, acima de tudo, a gente é um lar de transformação, de união, de formação. Isso também aconteceu em mim e é por isso que a gente quer representar isso dentro e fora do campo”, concluiu.